Bahia, política e religiosidades marcam literatura de Jorge Amado
Escritor, que faleceu há 11 anos, celebraria centenário no dia 10 de agosto.
Imagem: Zélia Gattai/Acervo Fotográfico Zéllia GattaiJorge Amado na cidade de Lima (Peru), no ano de 1986
Foi organizando o imaginário em milhares de palavras que Jorge Amado, um itabunense amante dos becos e ruelas da capital baiana, que faria 100 anos no próximo dia 10, revelou estivadores, artesãos, pescadores, sertanejos, coronéis e malandros, prostitutas, lavadeiras, sinhazinhas e mulatas, entre outros milhares de personagens, que com o tempo, se tornaram caricaturas. De 1931, com “O País do Carnaval”, até 1997, quando escreveu “O Milagre dos Pássaros”, foram 32 obras - romances, crônicas e memórias -, sobre temas políticos, sociais e culturais. Há 11 anos, no dia 6 de agosto de 2001, o escritor morreu por parada cardiorrespiratória.
(De segunda-feira (6) a sexta-feira (10), o G1 publica uma série de matérias em homenagem ao centenário de Jorge Amado).
Jorge Amado aliou realidade e ficção a partir da observação do cotidiano da cidade e do convívio intenso com o povo. “Ele não usava figuras de linguagem, era bem jornalístico, bem factual. Se referia a pessoas que efetivamente existiam, a poderes, orixás, divindades, que as pessoas do candomblé têm como real”, explica Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ, ex-diretor da Biblioteca Nacional, e amigo de Jorge.
Comunista e ateu, o escritor misturou temas como o culto do candomblé, a ideologia política stalinista, a dureza dos jagunços e seus coronéis do cacau, ou mesmo a liberdade da mulher, revertendo qualquer moral ou bom costume em histórias profundas e críticas.
"Ele faz parte de um projeto político, literário, cultural e sociológico. Por debaixo de sua criação, tem a intencionalidade de resolver os problemas sociais pela reconciliação de classes, de forma pitoresca, pela festa e pela dança. Desejo que está no texto do escritor e que é maior que a realidade”, relata Muniz Sodré.
O ‘jorgeamadez’
Muniz Sodré usa o termo “jorgeamadez” para definir as características da literatura do escritor baiano, por conta da originalidade com o uso das palavras e da habilidade na construção de um imaginário de povo. Para Gildeci Leite, professor da UNEB, que se dedica aos estudos da obra do baiano, a distinção pode ser medida pelas mais de mil palavras por ele já catalogadas durante seis anos em diversos livros de Jorge Amado, e que em breve pretende reuni-las em uma espécie de “dicionário amadiano”. Entre os exemplos, traz “balaio grande”; “estrovenga”, “copulativa estrela”, “bichocota”, apelidos de nádega grande, genitália masculina, mulher ninfomaníaca e genitália feminina, respectivamente.
“São falares do próprio povo, percebidos e usados por ele. Muitos jargões religiosos, africanos, usados no candomblé. Outras expressões que são usadas na língua portuguesa, como ‘comer e beber o morto’, que não é o ato antropofágico, mas dos comes e bebes dos funerais”, explica. Por conta desses “falares brasileiros”, Gildeci Leite acredita que a literatura de Jorge Amado está muito vinculada à descoberta do povo baiano, quase como um antropólogo, e daí inclui a necessidade frequente do escritor de atrelar às histórias os rituais da cultura negra, principalmente os segredos e as mitologias dos cultos afros. “Ele faz uma etnografia cultural da Bahia, consegue fazer leitura da cultura baiana e consolidar isso na obra”, avalia.
O professor Muniz Sodré concorda, e acrescenta que Jorge Amado transportou da Europa para a literatura brasileira o movimento neorrealista, caracterizado pelo forte teor ideológico de esquerda, surgido a partir dos anos 1940. “Acho que ele pertence ao neorrealismo, pela descrição minuciosa de costumes do povo e problemas sociais. Na obra dele, tem a aspereza dos problemas sociais e o pitoresco da vila da Bahia, dos costumes. Alguns críticos o condenam por isso, mas eu acho muito bom. É a estética neorrealista de construção imaginária do povo brasileiro", retrata.
A grande motivação de Jorge Amado foi “perseguir” a identidade dos brasileiros, mistério que “o império e a república deixaram para ser decifrado”, segundo explica Muniz Sodré, desejo buscado também por outros “grandes autores”, como Sérgio Buarque de Hollanda, Paulo Freire ou Caio Prado Júnior, a quem o compara. “Ele inventa a partir da cultura baiana: o cacau [sul do estado] e Salvador, cidade ao mesmo tempo real e imaginária. Bahia recriada, reinventada, linguajar que todo mundo reconhece, personagem que ninguém nunca viu, mas reconhece. Havia uma consciência política e afetiva de Jorge Amado em relação à Bahia”, diferencia.
Sempre simples, natural, direto, Jorge Amado também soube usar as palavras para explorar a descrição, tanto de ambientes, quanto do imaginário em torno do perfil estético ou psicológico de cada um de seus personagens. “Algumas cenas ele fez como se fosse um pintor. Quando ele fala dos cardápios ou de quando um coronel chama uma pessoa da cidade para almoçar, a descrição dos pratos leva meia página. Em Gabriela [cravo e canela, de 1952], diz que ela tinha o dedinho torno nos pés, que gosta de gato amarelo. Em ‘Dona Flor’, descreve os bondes que ela tomava para ir ao Rio Vermelho [bairro de Salvador], à casa dos tios. Ele coloca os personagens de frente para o leitor, vai desnudando, revelando desejos, temores, as coisas mais banais”, exemplifica o filósofo e professor da UFBA Milton Moura, que foi criado ao lado do bar do Vesúvio, em Ilhéus, cidade onde nasceu, local imortalizado no romance Gabriela.
Apesar do texto fluido, até coloquial, o leitor vai construindo a imagem de um personagem como Gabriela, por exemplo, através de pistas lançadas pelo escritor, afirma Milton Moura. “Ele nunca disse que Gabriela era linda, não aparece essa palavra, mas afirma a partir da sensualidade, da espontaneidade, da transparência dela. Como se dissesse a todo o momento que ela era ‘gostosa’”, detalha, usando um jargão atual. A generosidade na caracterização do personagem, marca que contribui para a popularidade de pessoas marginalizadas como os meninos de rua do livro Capitães de Areia (1937), é construída com o uso “abundante” de substantivos, adjetivos e advérbios, pontua Milton Moura.
“Algumas pessoas acham que é excesso. Eu acho maravilhoso, porque o que ele faz nunca me cansou. Dos grandes, o escritor mais econômico é Graciliano Ramos. Ou seja, se ele usa um adjetivo, não vai usar o mesmo, mas o seu romance é mais curso. Jorge era direto, não tinha preocupação. Com o tempo, ele vai ficar mais sofisticado na forma da descrição. Dona Flor possui maturidade bem maior que Gabriela, tem narrativa mais densa”, diz.
Imagem: Zélia Gattai/Acervo Fotográfico Zéllia GattaiJorge Amado no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador
Mística e baianidade
Muito do candomblé, da mestiçagem ou do sincretismo nos livros de Jorge Amado foi inspirado e influenciado pela convivência intensa que o escritor mantinha com a rotina dos terreiros, especialmente o Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, onde exercia o cargo de Obá. Ele era muito próximo de autoridades como Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois e Mãe Stella de Oxóssi, única atualmente viva.
“O misticismo e a religiosidade eram patentes. Ele tendo sido feito Obá, acreditasse ou não, ele era acreditado [dentro do terreiro]. No candomblé ninguém faz essa exigência subjetiva de ter que provar a sua crença, pede respeito, cumprimento das obrigações. E ele respeitava, exaltava e valorizava o povo do candomblé”, afirma Muniz Sodré, que também é Obá. Em 1946, um ano após assumir a função de deputado estadual por São Paulo, Jorge Amado conseguiu inserir a Lei da Liberdade de Culto Religioso, que redigiu, naquela Constituição Federal, mantida na de 1988.
Imagem: Zélia Gattai/Acervo Fotográfico Zéllia GattaiJorge Amado e Zélia Gattai na Tchecoslováquia
Quanto à falada “baianidade”, termo que identifica os estereótipos de Salvador e do recôncavo, conforme explica Milton Moura, especialista no tema, há quem acredite não ter sido ele o inventor. “Ele não construiu estereótipos, não existe tematização da Bahia, quando se fala da região do cacau, fala do cacau. Jorge Amado não inventou e nem cultivou a baianidade, ele escreveu para o grande público. Gabriela mesmo é uma moça da roça que veio para a cidade [Ilhéus] e em nenhum momento esteve preocupada em se adaptar”, afirma o especialista.
“Farda fardão camisola de dormir”, publicado em 1979, segundo Milton Moura, é o único romance cujo ambiente não é a Bahia, e sim o Rio de Janeiro. Bahia e Paris, nas palavras de Jorge Amado, eram “cidades para o homem viver”. “Você pode estar em todas as outras cidades, mas elas são mais ou menos, todas elas campos de trabalho e nem a Bahia, nem Paris são campos de trabalho. São cidades para o homem viver”, consta como uma de suas memórias no acervo da Fundação Casa de Jorge Amado.
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